"Mão de Luva e o mito fundador de Cantagalo", por Jounimax Junior

      Como filho de cantagalense, desde criança escuto a narrativa do lendário nobre português, duque (ou conde) de Santo Tirso, que teria desbravado as matas da região. Por isso quando aceitei o convite para escrever uma coluna sobre História da Região aqui no portal da Miramar, a primeira coisa que pensei é que deveria começar do começo e falar sobre o fascinante Mão de Luva, sobre as lendas e a
História acadêmica.

      Quando descobri que existem muitas evidências sobre o “fundador de Cantagalo”, fiquei maravilhado. Mesmo que oficialmente não seja o fundador, sua iniciativa de garimpar na região e o processo para desbaratar seu bando foram determinantes na constituição dos municípios de toda região que já pertenceu à freguesia de São Pedro de Cantagallo¹. Por isso está presente no imaginário de toda
região.

     As lendas do Duque de Santo Tirso, Mão de Luva

      Mão de Luva, segundo a história regional², teria sido um aristocrata português, duque (ou conde segundo outras versões) de Santo Tirso, que viveu no período pombalino e se apaixonou pela princesa de Portugal, Dona Maria (sentimento correspondido). Manuel Henriques teria participado (ou sido implicado, as versões variam nisso também) na conjuração contra o Marquês de Pombal e Dom José I. Com a repressão do movimento, diversos envolvidos teriam recebido penas severas (incluindo nobres), entre eles estaria o suposto duque. Por intercessão da princesa, sua condenação teria sido mudada de execução para exílio no Brasil. Antes da partida, conta-se que a princesa o teria visitado na prisão e lhe imposto um voto simbólico de não retirar a luva da mão direita até revê-la e tomá-la como esposa (aqui as lendas variam, umas dizem que a princesa teria beijado sua mão, outras que ela somente teria tocado e lhe dado um crucifixo e a luva). Segundo a tradição oral teria ainda o feito jurar que enriqueceria com a mineração de ouro para, um dia, retornar a Portugal e tentar uma nova revolução³. 

      Para cumprir tal juramento, Manuel Henriques teria vindo para nossa região, já que a Coroa cobrava o Quinto Real, imposto sobre toda extração aurífera na colônia. Conta-se que ele conseguiu juntar uma enorme quantia de ouro e deixou um mapa manuscrito.

      De acordo com a lenda, os soldados do governo de Minas Gerais já estavam desistindo de procurar o bando quando ouviram um galo cantar e assim localizaram o arraial e prenderam o bando. Daí teria surgido o nome do município. Mão de Luva teria sido degredado para a África e nunca mais se ouvido notícias sobre ele.

      Conta-se que Dona Maria I teria, ao se tornar rainha, mandado procurar seu amante, mas que por orientação de membros da corte portuguesa, o vice-rei do Brasil nunca teria seguido tal ordem. A loucura da rainha de Portugal e posteriormente rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves é atribuída pelas lendas ao desgosto de não poder ter de volta o seu amor.

      Mas para corroborar essas versões lendárias não se encontra base documental e há incongruências cronológicas (datas que não batem). A popularização da lenda se deve muito ao jornalista, cronista, poeta e ex-prefeito de Cantagalo, Acácio Ferreira Dias, que escreveu os livros Terra de Cantagalo em 1942 e Mão de Luva (Fundador de Cantagalo) em 1953. Manuel Henriques passou a ser conhecido como um nobre português dotado de coragem, bravura e lealdade. Como aponta a professora titular aposentada de História do Brasil na UFF, Dra Sheila de Castro Faria⁴, a criação desse mito se contextualiza em um período de nacionalismo romântico. Portanto, trata-se da heroicização típica de projetos identitários locais/nacionais da Primeira República e do pós-1930.

 Livro Terra de Cantagalo - Acácio Ferreira Dias, 1942

A História de Manuel Henriques, o Mão de Luva

      Manuel Henriques, de acordo com a documentação encontrada, nasceu na freguesia de Ouro Branco e viveu a maior parte da sua vida na freguesia de Guarapiranga⁵.  Mão de Luva nasceu na então capitania de Minas Gerais, não era português e não era aristocrata. No final do ciclo do ouro, na década de 1760, atravessou o Rio Paraíba passando provavelmente por Porto Novo, pelo que parece com a anuência do governo de Minas Gerais⁶, chegando aos Sertões do Macacu, que compreendia a área do Rio Macacu (de onde vem o nome) até o Rio Paraíba do
Sul.

Sertões do Macacu por Hermann Burmeinster

A nossa região era uma zona proibida por ser uma área fronteiriça entre a capitania de Minas Gerais e a capitania do Rio de Janeiro, que portanto, poderia ser usada para desvio do ouro da capitania mineira. Os sertões de Macacu compreende a área setentrional do Vale do Rio Paraíba do Sul, que no século XVIII tinha 6 mil quilômetros quadrados. Mesmo sendo uma região de mata fechada, portanto de
difícil acesso, e também considerada perigosa pela presença de indígenas considerados bravos, vários homens a adentraram. Já era conhecido pelas autoridades a existência de ouro em nossa região por relatos de homens que em contatos com indígenas souberam que havia esse minério nos rios e córregos da região8. Para fugir do Quinto Real, Manuel Henriques veio para esse zona proibida onde se estabeleceu e garimpou ouro de aluvião9 nos corregos e afluentes dos rios Negro, Macuco e Paraíba do Sul. Sua empreitada foi bem sucedida por 20 anos, provavelmente muito por causa do conchavo com autoridades de Minas Gerais.

       O desbaratar do bando liderado por Manuel Henriques está relacionado a uma disputa entre o vice-rei do Rio de Janeiro e o governador da capitania de Minas Gerais na década de 1780. Como disse anteriormente, a região se encontrava em uma área fronteiriça entre a capitania do fluminense e a capitania mineira. Naquele período ainda não estava resolvido a qual capitania pertencia os Sertões de Macacu, mesmo que para efeitos de jurisdição estivesse vinculada a Vila de Santo Antônio de Sá¹⁰

       Dom Luiz Vasconcelos vice-rei do Brasil, recebe a incumbência de acabar com o garimpo ilegal e leva a cabo essa tarefa. Mas, mesmo que soubesse da instalação do bando nos Sertões de Macacu, não fazia ideia de como chegar até lá saindo do Rio de Janeiro. Dom Luiz propõe uma aliança com o governador de Minas Gerais, Cunha Meneses, que demora e só age quando teme que as tropas do Rio
de Janeiro o façam antes.

Mão de Luva - imagem do livro Mão de Luva (Fundador de Cantagalo) de Acácio Ferreira Dias de 1953

      O bando é desbaratado e consta a captura de Manuel Henriques, seus irmãos e outros homens brancos e pardos, além de seus escravizados. Mas os processos do bando de Macacu ainda não foram encontrados¹¹.

       A reafirmação da jurisdição da capitania fluminense sobre os Sertões de Macacu se deu com a aliança do vice-rei com o arcebispo do Rio de Janeiro. Foi aberto um processo de culpa contra Manuel Henriques pela Inquisição (isso mesmo). O processo de culpa foi feito por conta da acusação e apreensão de José Gomes na freguesia de Maricá¹². O homem foi acusado de portar uma partícula de
hóstia consagrada junto com outros objetos relacionados ao sagrado em uma bolsa pendurada no pescoço. As informações do processo da Inquisição e sua instauração na arquidiocese do Rio de Janeiro, foram de grande valia para Dom Luiz. A reafirmação do bispo de que aquelas regiões fazem parte de seu bispado foram cruciais para que o vice-rei garantisse seu domínio na região¹³.

       A lenda e a História da fundação de Cantagalo

   A narrativa lendária do “duque de Santo Tirso” não é apenas um erro. Ela é uma construção histórica, um fato do imaginário regional¹⁴, que está diretamente ligado ao contexto histórico em que surgiu e se consolidou.

    Por sua vez a historiografia, a História acadêmica, não se prende a narrativas e busca através de pesquisa, discussão e contextualização chegar o mais próximo possível da realidade dos fatos.

    Mas isso não tira a beleza e não diminui a importância da nossa região. Nossa História continua ligada ao ciclo do ouro, a Inquisição portuguesa, ao ciclo do café (e a escravidão, o que precisa ser mais falado e pensado), a colonização Suíça, a ferrovia e viveu episódios incríveis e terríveis. Não precisamos romantizar nossa origem para amar nossa terra e nossa gente.

NOTAS E REFERÊNCIAS

1 - A historiadora Sheila de Castro Faria explica que história regional é lendária e
romantizada, enquanto a história da região é com rigor científico.

2 - A grafia antiga é Cantagallo com dois ‘l’ mesmo.

3 - DIAS, Acácio Ferreira. Mão de Luva. In: DIAS, Acácio Ferreira. Terra de
Cantagalo: subsídio para a história do município de Cantagalo. Niterói [RJ]: Diário
Oficial, 1942. v. 1, p. 35-40.

4 - FARIA, Sheila de Castro. Mão de Luva: a construção do mito. In: FARIA, Sheila
de Castro; OLIVEIRA, Anderson José Machado de (org.). Mão de Luva e as novas
minas de Cantagalo: ouro, indígenas e conflitos na capitania do Rio de Janeiro.
Cantagalo (RJ): Editora Cantagalo, 2024. p. 281 - 291.

5 - OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. O bando de Mão de Luva e o
contrabando de ouro nos sertões de Macacu (século XVIII). In: FARIA, Sheila de
Castro; OLIVEIRA, Anderson José Machado de (org.). Mão de Luva e as novas
minas de Cantagalo: ouro, indígenas e conflitos na capitania do Rio de Janeiro.
Cantagalo (RJ): Editora Cantagalo, 2024. p. 27 - 86

6 - Idem.

7 - Idem.

8 - Idem.

9 - O ouro de aluvião é ouro encontrado em depósitos de sedimentos (areia,
cascalho, argila) nos leitos e margens de rios.

10 - A Vila de Santo Antônio de Sá foi uma importante localidade colonial no Rio de
Janeiro, fundada como freguesia, que existiu até o século XIX, sendo desmembrada
para formar municípios como Itaboraí, Maricá e Cachoeiras de Macacu.

11 - OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. O bando de Mão de Luva e o
contrabando de ouro nos sertões de Macacu (século XVIII). In: FARIA, Sheila de
Castro; OLIVEIRA, Anderson José Machado de (org.). Mão de Luva e as novas
minas de Cantagalo: ouro, indígenas e conflitos na capitania do Rio de Janeiro.
Cantagalo (RJ): Editora Cantagalo, 2024. p. 27 - 86.

12 - OLIVEIRA, Anderson José M. de. Mão de Luva, a Inquisição e o Santíssimo
Sacramento: o desacato que virou paróquia (c. 1780–c. 1806). In: FARIA, Sheila de
Castro; OLIVEIRA, Anderson José Machado de (org.). Mão de Luva e as novas
minas de Cantagalo: ouro, indígenas e conflitos na capitania do Rio de Janeiro.
Cantagalo (RJ): Editora Cantagalo, 2024. p. 145-198.

13 - Idem.

14 - Além de Cantagalo onde Mão de Luva é não só conhecido, como ainda
reverenciado. Em outros municípios da região como Bom Jardim, além de uma
localidade onde a lenda diz ter sido esconderijo de Manuel Henriques, foi produzido
o filme. Mão de Luva – Uma História de Amor, em 2024. Disponível no canal
TERRAS ALTAS link <https://youtu.be/66VVLkHYAO0> Acesso em: 13 dez. 2025.


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